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Estudo mostra como ferramentas jurídicas são usadas para promover o declínio da democracia no Brasil

Novo livro mostra como o Direito pode ser mobilizado tanto para apoiar quanto para resistir a movimentos autoritários em diversas áreas de políticas públicas.

Nos últimos 20 anos, a porcentagem da população mundial vivendo sob regimes autocráticos aumentou de 50% em 2003 para 71% em 2023. De acordo com o índice V-Dem, que mede a democracia globalmente, o nível de democracia em 2023 retrocedeu aos níveis de 1985. Preocupados com esse declínio democrático global, pesquisadores da FGV Direito São Paulo e parceiros internacionais iniciaram, em 2020, o projeto Estado de Direito e Legalismo Autoritário. O objetivo do projeto é investigar como ferramentas jurídicas são utilizadas para implementar projetos autoritários e como o Direito pode ser um meio de resistência e defesa da democracia. 

O projeto tem duas frentes: a primeira delas foca no Brasil e reuniu especialistas em diferentes instituições e áreas de políticas públicas para investigar como o avanço do autoritarismo entre 2019 e 2022 afetou seus campos de estudo. A segunda é uma pesquisa comparativa na qual pesquisadores brasileiros e estrangeiros examinam similaridades e diferenças nos processos de declínio democrático em mais de 15 países, analisando como o Direito foi usado tanto para promover o declínio da democracia quanto para resistir a esses processos.

A principal contribuição da pesquisa nacional foi o lançamento do livro Estado de direito e populismo autoritário: erosão e resistência institucional no Brasil (2018-22), editado pelos professores Oscar Vilhena Vieira, Raquel Pimenta, Fabio de Sá e Silva e Marta Machado, e publicado em 2023 pela Editora FGV. O livro traz pesquisas inéditas sobre as estratégias e mecanismos jurídicos usados pelo governo do Presidente Jair Bolsonaro para promover o enfraquecimento de instituições democráticas e políticas públicas. 

O capítulo escrito por Oscar Vilhena Vieira, Rubens Glezer, e Ana Laura Barbosa destaca um elemento central do modus operandi de Bolsonaro. Diante da incapacidade em obter apoio do Congresso para a aprovação de leis, o governo optou por avançar sua agenda através de decretos, medidas provisórias e portarias – isto é, apostou em medidas infralegais, que não precisam da aprovação do Legislativo e podem ser resolvidas na “canetada” pelo próprio presidente. As pesquisadoras Marta Machado e Raquel Pimenta destacam a relevância de legados históricos que favorecem o avanço do autoritarismo nos tempos atuais. A democracia brasileira não conseguiu resolver problemas cruciais, como a violência policial e a corrupção, e o crescimento do autoritarismo torna ainda mais difícil enfrentar esses desafios.

STF

O livro também explora o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) durante o governo Bolsonaro. Luciana Gross Cunha, Fabiana Luci de Oliveira e Lívia Buzolin mostram que o STF foi amplamente acionado por partidos da oposição e por atores críticos ao governo, tornando-se um espaço de resistência onde forças de oposição conseguiram expressar suas reivindicações. Eloísa Machado de Almeida e Luíza Pavan Ferraro analisam o comportamento da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria Geral da República (PGR) em processos no STF contra o governo. A PGR foi marcada pela inação diante de violações constitucionais, enquanto a AGU não apenas fez defesa ampla de todos os atos do governo, mas também uma defesa pessoal do presidente. Durante a pandemia, conforme apontado por Rubens Glezer, o STF teve um papel crucial ao garantir a autonomia dos governadores estaduais para adotar medidas baseadas em evidências científicas, como a vacinação e o distanciamento social, apesar da política negacionista do governo federal, que resultou em milhares de mortes evitáveis.

Políticas públicas

No campo da educação, Michelle Badin e Helena Funari analisam as ações do governo para minar a autonomia financeira, administrativa e didático-científica das universidades, que é garantida pela Constituição. Na área ambiental, Mariana Mota Prado examina como o governo contribuiu para o recorde de incêndios na Amazônia em 2019 com o desmonte do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais e o enfraquecimento do Ibama, por meio de cortes de orçamento e pessoal. Órgãos como o Inpe e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), essenciais para o monitoramento da Amazônia, também foram afetados. Já Henrique Castro, Carla Bezerra e Paulo Henrique Cassimiro mostram como os espaços de participação da sociedade civil foram reduzidos durante o governo Bolsonaro, por meio do enfraquecimento dos conselhos participativos, suspensão de contratos com ONGs e ataques retóricos que buscavam deslegitimar organizações entendidas como adversárias das pautas do governo. 

Por fim, a capacidade do Estado brasileiro de produzir dados de qualidade, o que é essencial para a formulação de boas políticas públicas, também foi ameaçada por meio dos ataques à independência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e aos resultados de suas pesquisas. No entanto, o IBGE conseguiu resistir a essas tentativas de intervenção indevida, como destaca a autora Ana Lídia Santana. Entre os fatores que contribuíram para o sucesso dessa resistência estão a longa tradição de integridade estatística do IBGE, seu corpo de servidores concursados, e o fato de seus presidentes serem historicamente escolhidos entre funcionários de carreira, menos suscetíveis a pressões políticas. Além disso, o IBGE mantém boas relações com a imprensa e agências internacionais de estatística, o que ajudou a assegurar apoio durante os ataques.

Outros estudos

O livro também explora o campo da economia, com um estudo de Diogo Coutinho e Iagê Miola sobre as transformações profundas em como é feita a regulação econômica e os instrumentos disponíveis para as agências reguladoras. O capítulo de José Garcez Ghirardi explora a construção retórica da persona política de Bolsonaro, argumentando que ela se estrutura a partir de uma oposição radical aos valores básicos de civilidade. Já Thiago Amparo investiga os esforços do governo Bolsonaro para permitir a ocorrência de situações de discriminação em ambientes como igrejas e empresas, ampliando a proteção do domínio privado contra a interferência pública. Por fim, Fabio de Sa e Silva examina as conexões entre a operação Lava-Jato, as mudanças na profissão jurídica, e o Governo Bolsonaro. 

Os resultados de todos esses estudos que compõem o projeto estão publicados no livro Estado de direito e populismo autoritário, disponível no site da Editora FGV. Acompanhe as novidades das próximas etapas no site do projeto.